quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Três poemas de Tiago Patrício


O MEDO

O vento abeira-se das grades
cresce por debaixo das pedras
e pode ser a qualquer momento
um comboio que abranda
ou uma acidez que corrompe o tempo
Dentro da casa
a fisiologia da noite
propaga-se em vibrações
e movimentos peristálticos
na transmutação da sombra
Duas voltas à porta e à respiração
uma para o medo e a outra para o vento
para a sombra das árvores
ou para uma coisa mais terrível
como o recomeço do Inverno
***
TINHA UMA MULHER A CAMINHAR EM FRENTE QUE
desfiava páginas inteiras de uma geografia visceral
e ocultava os tecidos internos numa pálpebra
sublinhada de vermelho
Era uma mulher leve de cabeça emplumada
a inspirar a gradação no homem
e a pedir que soletrasse a cor do sexo
E ele a compreender tudo
e a retirar uma dioptria excessiva
para explicar o peso tremendo
dos olhos num alfabeto anguloso
cheio de figuras angustiadas
e polígonos manchados de sémen
Mas a mulher discorria pela sala cheia de imprudência
subia à tona e desaparecia com as mãos lúcidas
gravadas na cordilheira do homem intumescido
Separava o corpo do corpo e interrompia a tradução
quando ele se inclinava para aclarar os cabelos
E o homem gelado pela insuportável suavidade
daquelas sílabas a repousar os olhos dentro dela
a procurar o lábio no sangue ofendido
e a sucumbir como figos secos em Dezembro
***
A ABOLIÇÃO DAS FRONTEIRAS

As fronteiras eram belas
cheias de mulheres fardadas
de cores fortes e madeixas imperativas
que ansiavam por ser atravessadas
Fronteiras solenes quando cobertas de frio
no aperto da multidão
como trincheiras forradas a papel em triplicado
e semeadas de vida em trânsito
Eram fábricas de nacionalidades
com carimbos espalhados pela periferia
em linhas acidentais entre as montanhas
Eram a máxima descentralização de um estado
a exterioridade até às costuras
para conter a implosão do território
Essas mulheres a desfiar um sorriso de vidro
e a ordenar um amor impuro aos expatriados
[in Cartas de Praga, Clube Português de Artes e Ideias, 2012]