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sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Para atravessar contigo o deserto do mundo

Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
...Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento

Sophia de Mello Breyner Andresen
Livro Sexto (1962)





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quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Quem diz que Amor é falso ou enganoso,


Quem diz que Amor é falso ou enganoso, 
Ligeiro, ingrato, vão desconhecido, 
Sem falta lhe terá bem merecido 
Que lhe seja cruel ou rigoroso. 

Amor é brando, é doce, e é piedoso. 
Quem o contrário diz não seja crido; 
Seja por cego e apaixonado tido, 
E aos homens, e inda aos Deuses, odioso.

Se males faz Amor em mim se vêem; 
Em mim mostrando todo o seu rigor, 
Ao mundo quis mostrar quanto podia. 

Mas todas suas iras são de Amor; 
Todos os seus males são um bem, 
Que eu por todo outro bem não trocaria.

Luís Vaz de Camões
(1524-1580)

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segunda-feira, 15 de outubro de 2012

*

 " Hundir las manos en el agua
      del tiempo. Ir al fondo
      mismo del futuro que pasa.
      Descender por sonidos
      que antes nadie escuchara,
      sabiendo que no existen
      la vida y la esperanza.
      Deshacer el ovillo
      dentro del alma
      desnudando a los mitos
      con un golpe de luz en la mirada.
      Vivir, por vivir hoy
       no por vivir mañana.
       Estar siempre en la punta
       de polvo de la espada.
       Beber despacio el tiempo
       - el nuestro y nuestra nada-.
       Acariciar de noche
       las estrellas mojadas.
       Y de día esos labios
       en que el dolor se para
       indicando que hay algo
       extraño que no pasa "

          Julia Uceda.


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quinta-feira, 11 de outubro de 2012

* * *


A alegria é uma borboleta

Voando sobre a face da terra,
Mas a tristeza é um pássaro 
de grandes asas negras
Que nos erguem muito acima da vida.
Lá embaixo, à luz do Sol, a vida flui, tudo cresce.
O pássaro da tristeza, porém, voa bem alto,
Lá onde velam os anjos da dor
Sobre o covil da morte.


***



Edith Södergran



foto: Loonen



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terça-feira, 9 de outubro de 2012

-

Afinal

Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir. 
Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente,
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas
E toda a realidade é um excesso, uma violência,
Uma alucinação extraordinariamente nítida
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,
O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas
Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.

Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
Quanto mais personalidade eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.
Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,
Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo,
E fora d'Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco.

Cada alma é uma escada para Deus,
Cada alma é um corredor-Universo para Deus,
Cada alma é um rio correndo por margens de Externo
Para Deus e em Deus com um sussurro soturno.
Sursum corda! Erguei as almas! Toda a Matéria é Espírito,
Porque Matéria e Espírito são apenas nomes confusos
Dados à grande sombra que ensopa o Exterior em sonho
E funde em Noite e Mistério o Universo Excessivo!
Sursum corda! Na noite acordo, o silêncio é grande,
As coisas, de braços cruzados sobre o peito, reparam

Com uma tristeza nobre para os meus olhos abertos
Que as vê como vagos vultos noturnos na noite negra.
Sursum corda! Acordo na noite e sinto-me diverso.
Todo o Mundo com a sua forma visível do costume
Jaz no fundo dum poço e faz um ruído confuso,
Escuto-o, e no meu coração um grande pasmo soluça.

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)


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segunda-feira, 8 de outubro de 2012

*


Traze-me um pouco das sombras serenas
que as nuvens transportam por cima do dia!
Um pouco de sombra, apenas,
- vê que nem te peço alegria.

Traze-me um pouco da alvura dos luares
que a noite sustenta no teu coração!
A alvura, apenas, dos ares:
- vê que nem te peço ilusão.

Traze-me um pouco da tua lembrança,
aroma perdido, saudade da flor!
-Vê que nem te digo - esperança!
-Vê que nem sequer sonho - amor!

Cecília Meireles

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MÚSICA

Tentei fugir da mancha mais escura

que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.

Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.

Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão ...

Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que sem voz me sai do coração.


David Mourão-Ferreira

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domingo, 7 de outubro de 2012

*


“Photomaton & Vox”

«Se alargas os braços desencadeia-se uma estrela de mão
a mão transparente, e atrás,
nas embocaduras da noite,
o mundo completo treme como uma árvore
luzindo
com a respiração. E ofereces,
das unhas à garganta
talhada, a deslumbrante queimadura do sono.
- Em teu próprio torvelhinho se afundam
as coisas. Porque és um vergão raiando entre
esses braços
que irrompem da minha morte se durmo, da loucura
se a veia
violenta que me atravessa a cabeça se torna
ígnea como
um rio abrupto num mapa. Quando as salas
negras fotogáfricas
imprimem a sensível trama das estações
com as paisagens por cima. E
jorras
desde as costas dos espelhos, seu coração
arrancado pelos dedos todos de que se escreve
o movimento inteiro.
Nunca digas o meu nome se esse nome
não for o do medo. Ou se rapidamente o lume se não repartir
nas formas
lavradas como chamas à tua volta. Os animais
que essa labareda ilumina
na boca. Desde a obscuridade
de tudo que tudo
é inocente. Nunca se pode ver a noite toda de súbito.
E da fronte aos quadris em tuas linhas, és
cega, fechada.
A minha força é a desordem. Reluzes
na têm pera enxuta – queima-te.
O ouro desloca a tua cara. Um nervo
atravessa as frementes, delicadas massas
das imagens:
como uma ferida límpida desde a nascença pela carne
fora. És alta em mim por essa
cicatriz que se abre ao dormir e quando
se acorda fica aberta.»

Photomaton & VoxHerberto Helder (Ed. Assírio & Alvim)

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sábado, 6 de outubro de 2012

*


Na margem do coração

Não voltes a perguntar se é isto
o destino porque não sei o que essa palavra
encobre, ou finta, ou derruba, sei
pouco do mundo para dizer isto ou aquilo.
Esta rua conduz a uma outra
que é cruzada por outra ainda. E
os ventos ali se cruzam, as vidas
também, há sempre engarrafamentos.
Mais abaixo fica o rio, apanhavas muitas
vezes o barco já de madrugada,
na manhã seguinte o percurso inverso.
Por mais que não desejes o infinito
prende-se a estes restos,
vegetação rasteira, inquietações,
e na margem do coração
perguntas de novo por que,
em tudo isso,
ninguém te repete o corpo.

Fernando Luís Sampaio

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Envolto em luas
distraio fracas luzes
e repasso a cena
em cômodas
e lentas
metades: revolta
latejada
no tempo
despreparado.
O destino
sela luzes
aparentes.
Envolto em luas
desconsidero a farsa:
lado revisto pelo espelho.

Pedro Du Bois

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Poema XIII

Não me procures ali
Onde os vivos visitam
Os chamados mortos.
Procura-me
Dentro das grandes águas
Nas praças
Num fogo coração
Entre cavalos, cães,
Nos arrozais, no arroio
Ou junto aos pássaros
Ou espelhada
Num outro alguém,
Subindo um duro caminho
Pedra, semente, sal
Passos da vida. Procura-me ali.
Viva.

Hilda Hilst
(1930-2004)

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Poema da auto-estrada

Voando vai para a praia
Leonor na estrada preta
Vai na brasa, de lambreta.

Leva calções de pirata,

vermelho de alizarina
modelando a coxa fina
de impaciente nervura.
como guache lustroso,
amarelo de indantreno
blusinha de terileno
desfraldada na cintura.

Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa de lambreta.

Agarrada ao companheiro
na volúpia da escapada
pincha no banco traseiro
em cada volta da estrada.
Grita de medo fingido,
que o receio não é com ela,
mas por amor e cautela
abraça-o pelo cintura.
Vai ditosa, e bem segura.

Como rasgão na paisagem
corta a lambreta afiada,
engole as bermas da estrada
e a rumorosa folhagem.
Urrando, estremece a terra,
bramir de rinoceronte,
enfia pelo horizonte
como um punhal que enterra.
Tudo foge à sua volta,
o ceu, as nuvens, as casas,
e com os bramidos que solta
lembra um demónio com asas.

Na confusão dos sentidos
já nem percebe, Leonor,
se o que lhe chega aos ouvidos
são ecos de amor perdidos
se os rugidos do motor.

Fuge, fuge, Leonoreta
Vai na brasa, de lambreta.

António Gedeão

(1906-1997)

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O que eu fui

O que eu fui o que é?
Relembro vagamente
O vago não sei quê
Que passei e se sente.

Se o tempo é longe ou perto
Em que isso se passou,
Não sei dizer ao certo,
Que nem sei o que sou.

Sei só que me hoje agrada
Rever essa visão
Sei que não vejo nada
Senão o coração.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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brasil

O Zé Pereira chegou de caravela
E preguntou pro guarani de mata virgem
- Sois cristão?
- Não,  Sou bravo, sou forte sou filho da morte
Tetetê tetê Quizá Quizá Quecê!
Lá de longe a onça resmungava Uu! Ua! uu!
O negro zonzo saído da fornalha
Tomou a palavra e respondeu
- Sim pela graça de Deus
Canhem Babá Canhem Babá Cum Cum!
E fizeram o carnaval.

Oswald de Andrade
(1890-1954)

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Instrução primária 

Não saibas: imagina…
Deixa falar o mestre, e devaneia…
A velhice é que sabe, e apenas sabe
Que o mar não cabe
Na poça que a inocência abre na areia.

Sonha!
Inventa um alfabeto
De ilusões…
Um á-bê-cê secreto
Que soletras à margem das lições…

Voa pela janela
De encontro a qualquer sol que te sorria!
Asas? Não são precisas:
Vais ao colo das brisas,
Aias da fantasia...

Miguel Torga 
(1907-1995)


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"As Facas



Quatro letras nos matam quatro facas
que no corpo me gravam o teu nome.
Quatro facas amor com que me matas
sem que eu mate esta sede e esta fome.

Este amor é de guerra. (De arma branca).
Amando ataco amando contra-atacas
este amor é de sangue que não estanca.
Quatro letras nos matam quatro facas.

Armado estou de amor. E desarmado.
Morro assaltando morro se me assaltas.
E em cada assalto sou assassinado.

Quatro letras amor com que me matas.
E as facas ferem mais quando me faltas.
Quatro letras nos matam quatro facas.

(Manuel Alegre, in “Obra Poética”)


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Escuto mas não sei
Se o que oiço é silêncio
Ou deus

Escuto sem saber se estou ouvindo
O ressoar das planícies do vazio
Ou a consciência atenta
Que nos confins do universo
Me decifra a fita

Apenas sei que caminho como quem
É olhado amado e conhecido
E por isso em cada gesto ponho
Solenidade e risco

Sophia

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sexta-feira, 5 de outubro de 2012

*

Marília, nos teus olhos buliçosos
Os Amores gentis seu facho acendem;
A teus lábios, voando, os ares fendem
Terníssimos desejos sequiosos.

Teus cabelos subtis e luminosos
Mil vistas cegam, mil vontades prendem;
E em arte aos de Minerva se não rendem
Teus alvos, curtos dedos melindrosos.

Reside em teus costumes a candura,
Mora a firmeza no teu peito amante,
A razão com teus risos se mistura.

És dos Céus o composto mais brilhante;
Deram-se as mãos Virtude e Formosura,
Para criar tua alma e teu semblante.

Bocage, in 'Sonetos'

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Os amantes sem dinheiro



Tinham o rosto aberto a quem passava.
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.

Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro.
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.

Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto
que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.

Eugénio de Andrade.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

O amor é o amor - e depois?!


O amor é o amor - e depois?!
Vamos ficar os dois
a maginar, a imaginar?...

O meu peito contra o teu peito
cortando o mar, cortando o ar.
Num leito
há todo o espaço para amar!

Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor,
e trocamos - e somos um? somos dois? -
espírito e calor!

O amor é o amor - e depois?!



Alexandre O'Neill, Poesias Completas

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