Crónica de Ferreira Fernandes
A palavra mais palavra do mundo: palavra
Como seu pai o foi de vinhos, queijos e especiarias, o francês Bernard Pivot é um merceeiro. Ele fornece palavras para fora. Melhor, palavra a palavra, no máximo em pequena frase, como o montinho de cinco tangerinas ou a dúzia de maçãs-da-índia das quitandeiras da minha terra. Tudo começou por o pai, durante a Segunda Guerra Mundial, ter sido enviado da França ocupada para a Alemanha. Mãe e irmãos abandonaram o negócio e a casa de Lyon, foram para o campo e de livros só levaram uma velha edição do Petit Larousse. Garoto, Bernard conheceu primeiro as palavras do que os livros, o dicionário do que os romances.
Adulto, tornou-se durante décadas uma das personagens mais poderosas de França, apresentando programas culturais na TV, como Apostrophes, entre 1973 e 1990, e Bouillon de Culture, nos dez anos seguintes. Da Academia Francesa e membro do júri Goncourt, continua a fazer vender livros, mas trago-o aqui por causa do seu pequeno negócio, a palavra. Acabo ler o seu Les Mots de Ma Vie (Editora Albin Michel, Paris, 2011), as palavras da minha vida. Se fosse arquiteto, Bernard Pivot seria um Álvaro Siza que se interessava sobretudo pelo tijolo.
No Bouillon de Culture, o programa acabava com Pivot a exigir um tijolo ao convidado: qual a sua palavra preferida? Um dia, Woody Allen recusou-se a responder, mesmo depois da insistência: «Não posso dizer, a minha mãe pode estar a ver o programa.» Marcello Mastroianni disse «lumière», que não é tão bela como luz, e Françoise Giroud, que dirigiu a revista L"Express, disse «tendresse», que é mais bela do que ternura. Um escritor de quem me esqueci o nome disse «concupiscência». Bernard Pivot também fundou a revista literária Lire e criou os Dicos d"Or, campeonatos de ortografia, que mobilizavam a França com ditados. Foi ouvindo-os, a esses ditados, que eu suspeitei de que a nossa cultura facilitista começou com a falta de duplas consoantes.
Apesar de ter vários livros publicados, Pivot recusou-se sempre a ser chamado escritor: «Não tenho estilo.» Explicando-se, disse não ter aquele saber entrelaçar palavras de forma original que leve, com cinco linhas lidas, à certeza: «É Proust.» Ciente de que nunca ninguém dirá «é Pivot», porque lhe falta o fio condutor único e luminoso, abandonou o colar da literatura para se dedicar à cultura de pérolas. Já académico, publicou um livrinho chamado 100 Expressões a Salvar, frases feitas de origem popular em vias de extinção. Quando tirou o curso, Bernard Pivot especializara-se em jornalismo económico, género que felizmente trocou cedo pelo literário: o livrinho tem bem mais de cem expressões. O seu mundo, a sua vida, não são números mas palavras. Daí, este Les Mots de Ma Vie, que já anunciei ser a razão desta crónica que ainda não saiu do prefácio.
De uma a uma, de A, ad hoc, a Z, zut! (bolas!), Pivot faz a autobiografia. Diz-me as tuas palavras, dir-te-ei quem és, é a sua tese. Aquele da concupiscência nem sabe como se revelou aos telespetadores... Pivot começa com ad hoc para logo a varrer - soa-lhe a comissões a constituir, coisa engravatada igual ao modus operandi dos nossos polícias e jornalistas. Pivot ouve ad hoc e traduz para Haddock, o amigo de Tintin e capitão de pragas e blasfémias. Tudo isto - saber de alguém que transforma ad hoc por «mil milhões de ectoplasmas!» - é-nos contado em meia página. E passa-se à palavra seguinte. À confissão seguinte.
Com a palavra homem, Pivot apresenta uma lista dos que conheceu, sem nomes, mas circunstância: como aquele que colava a orelha ao iPhone, onde tinha gravado o barulho do mar que na sua infância ouvia com a orelha colada a uma concha. Não se pode resumir uma vida numa palavra, diz Pivot. Mas buscando na memória, que está cheia de palavras, mesmo quem não quer ser escritor faz um belo livro.